Doujinshi

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O Que É um Doujinshi?

Um Doujinshi (同人誌) é uma obra — original ou parodiada — publicada de forma independente pelo próprio autor, sem o envolvimento do mercado editorial e de representantes dos direitos autorais. O nome vem da união da palavra “doujin” (同人 / fraternidade, clube) com o sufixo “shi” (誌 / indica uma publicação). Ou seja, uma publicação voltada para um grupo de pessoas com interesses em comum. Para nós, o doujinshi é o equivalente japonês do Fanzine. Mas qualquer tentativa de comparação entre os dois deve ser evitada, pois o doujinshi tem seus próprios conceitos e ideologias.

Uma típica paródia em estilo mangá. Não parece muito diferente de um mangá autêntico.

O artista ou escritor que produz um doujinshi é chamado de Doujinka (同人家). E antes de ele publicar sua primeira obra, precisa definir um nome para seu Círculo (サークル / do inglês “circle”), que nada mais é que um selo fictício; um nome que irá representar os interesses dele e do grupo que ele quer conquistar. Um círculo nem sempre é composto por um único artista, e em alguns casos pode ser até um estúdio caseiro.

Devido a sua natureza informal, a quantidade de obras parodiadas e a alta demanda por material erótico e pornográfico, o doujinshi pode ser encarado de diversas formas, por diferentes públicos. Para uns, é aquele belo romance sobre o casal que não deu certo na obra original. Para outros, é aquele mangá sacana, bem ou mal desenhado com personagens de animes famosos. Mas o fato é que o doujinshi é o principal meio que os artistas e escritores japoneses que ainda não conquistaram a carreira profissional têm de se promoverem e de se comunicarem com pessoas que tenham gostos parecidos.

Formatos e Métodos de Distribuição

Não há restrições quanto ao formato da mídia na qual o doujinshi pode ser publicado. Pode ser um mangá, um romance, um artbook ou até mesmo um jogo ou um CD de música. Esses dois últimos, porém, recebem classificações especiais e têm suas próprias peculiaridades, não sendo o foco deste artigo.

Mesmo que hoje seja possível para o círculo cuidar de todo o processo criativo e editorial de seu trabalho, a principal forma do doujinshi virar produto ainda é através das gráficas. Nesse caso não há muita diferença em relação ao mercado profissional. O curioso aqui é que há gráficas especializadas em atender círculos doujin, havendo até concorrência, trazendo qualidade semi-profissional a preços populares. Parece que no Japão tudo é mais fácil, não é mesmo?

Há uma forma ainda mais barata para se produzir um doujinshi, chamada de Copybon (コピー本). O copybon é uma espécie de fotocópia (ou xerox, se preferir) do material original, podendo ser montado pelo próprio círculo. Apesar de ser o método mais amador, ele também tem um ponto positivo, que é o principal controle que o círculo tem sobre o trabalho. Outro detalhe é que se dá uma zebra e o círculo envia para a gráfica um material não finalizado ou que precisa de revisão, o resultado acaba sendo um produto aquém do esperado. E esse é o tipo de prejuízo que só uma grande empresa teria condições de arcar.

Exemplo de Copybon

Na grande maioria dos casos, os doujinshis são distribuídos pelos círculos em eventos como o Comiket, o maior e mais popular do Japão, responsável pela formação da identidade coletiva que o doujinshi tem hoje. Círculos comparecem, vendem seus doujinshis, encontram as pessoas que gostam daquilo que fazem. É um prazer para eles. E para o fã, comparecer ao Comiket para prestigiar o trabalho do seu círculo favorito e conhecer novas obras originais e paródias não é apenas um hobby – é uma arte, uma doutrina.

A Transformação em um Mercado – Crescimento e Expansão

Devido ao aumento incessante da circulação desse material e a falta de uma lei que proíba a comercialização do mesmo, na década de 90 o doujinshi começou a ser visto como um grande mercado em potencial a ser explorado. E a criação de estabelecimentos comerciais focados na venda desses artigos seria inevitável. Um deles é a Toranoana, fundada em 1996. Inicialmente uma companhia limitada, hoje é uma rede que conta com mais de 10 estabelecimentos, com o foco principal em Akihabara. A rede também possui uma versão online, cujo estoque é atualizado diariamente, com pequenas resenhas para atrair os entusiastas do doujinshi. Mas as lojas físicas da Toranoana ainda possuem um diferencial: há espaços dedicados exclusivamente aos doujinkas, onde eles podem trocar ideias e fazer novos contatos.

A Mandarake também é outro grande nome quando o assunto é doujinshi. Mesmo não sendo um doujin shop propriamente dito — a rede existe desde a década de 80 e é especializada na venda de produtos usados e raros para colecionadores –, na Mandarake também pode ser encontrada uma vasta seleção dessas publicações, das mais antigas até as mais recentes. E se até aqui você já ficou interessado pelos doujinshis, uma boa notícia: a Mandarake Online aceita pedidos internacionais.

Um pouco mais adiante, no início dos anos 2000, a indústria da animação adotou uma nova prática que de uma vez por todas consolidaria a importância do doujinshi na cultura popular japonesa e o tornaria conhecido internacionalmente: a criação de animes e franquias adaptadas diretamente das publicações amadoras. Um dos primeiros doujinshis adaptados para a indústria da animação foi Haibane Renmei, criação de Yoshitoshi ABe, artista que ganhou fama na segunda metade dos anos 90 por causa de seu trabalho em Serial Experiments Lain. Logo depois, foi a vez de Tsukihime, um dos trabalhos amadores mais cultuados (em âmbito internacional) de todos os tempos, criado pelo círculo TYPE-MOON. Tsukihime faria um sucesso tão grande, que traria fama e verba o suficiente para seus criadores transformarem um círculo amador em uma empresa séria. Ironicamente, o anime foi considerado um fracasso, e sua existência não é reconhecida pelos fãs mais bitolados da obra.

Finalmente em 2008, tivemos o início uma nova era para o doujinshi, que traz indícios de uma possível globalização também nesse meio. Os criadores do anime Strike Witches, projeto patrocinado pelo estúdio GONZO em parceria com serviços americanos de internet streaming, publicaram pelo círculo Firstspear um doujinshi que faz parte do mesmo universo que eles conceberam para a franquia. A distribuição não saiu do cenário amador, mas o trabalho é considerado oficial e foi publicado em edição bilíngue, embora somente a porção mangá do doujinshi tenha sido traduzida para o inglês. Um pequeno avanço, e sinal de novos tempos.

Strike Witches: Witch in Africa, feito pelos criadores originais e publicado como material oficial em edição bilíngue. Dêem boas vindas ao doujinshi globalizado!

Controvérsias

Há muito tempo se discute até que ponto o doujinshi pode ser considerado um material inofensivo perante a Lei dos Direitos Autorais. E a verdade é que até agora ninguém encontrou uma resposta definitiva para isso. Mesmo que a intenção dos doujinkas que fazem paródias seja (ou deveria ser) homenagear e expandir a obra original, é inegável que a consequência disso seja a proliferação de incontáveis versões alternativas de uma obra, sem a aprovação do criador original e da empresa responsável. Mas na prática isso acaba trazendo algo benéfico para os detentores dos direitos – o doujinshi vira uma enorme propaganda da obra original, e influencia no aumento da sua popularidade, gerando mais lucros para as empresas. Novos talentos também são descobertos dessa forma, e o ato de proibir o doujinshi poderia sair pela culatra, principalmente para as editoras.

A transformação mercadológica que o doujinshi sofreu nos anos 90 também gerou polêmica dentro do próprio mundo doujin – doujinkas da “velha guarda” acreditam que o cenário atual desrespeita certas ideologias do doujinshi, principalmente por causa dos estabelecimentos que trazem essas publicações para as massas de forma facilitada, porém sem a participação direta do círculo, que só acontece em eventos. De acordo com eles, essa forma de distribuição anula a interação entre o círculo e o fã, um dos aspectos mais importantes. Por outro lado, vale lembrar que é justamente por causa do advento dos doujin shops, que muitos fãs tiveram acesso ao doujinshi pela primeira vez, e círculos passaram a ter uma nova alternativa para publicar seus trabalhos.

Considerações Finais

Mesmo gerando tanta polêmica, o doujinshi, somado à postura de uma nação que valoriza o esforço e o trabalho em conjunto, é um dos maiores exemplos de como o mercado informal pode trazer benefícios e contribuir para o crescimento da indústria. Mas esse é um período de mudanças, e o doujinshi já atingiu proporções absurdas, sem sair do lugar de onde começou. O conteúdo original diminui, e as paródias, eróticas ou não, só aumentam. O boom é iminente. Resta saber se o dia da explosão resultará num final feliz, onde o doujinshi e a indústria andarão de mãos dadas para sempre, ou num final ruim, onde a indústria tira do doujinshi todo os privilégios que lhe deu ao longo da jornada. Seja como for, o doujinka continuará fazendo a mais nova versão daquela velha paródia com a Rei Ayanami de EVANGELION até o dia em que um advogado bata em sua porta dizendo que o que ele faz é ilegal.

Vamos esperar que isso não aconteça, OK?

Adendo: Curiosidades

  • As origens do doujinshi datam desde o final do século 19, quando romances curtos de aspirantes a novelistas eram publicados em pequenas revistas. O doujinshi como é conhecido atualmente só surgiu após a popularização do mangá e o advento do anime. Ambas as mídias contribuíram para a mudança no foco – de criações originais para paródias de obras populares.
  • Muitos mangákas que hoje são conhecidos internacionalmente, foram doujinkas no passado, como é o caso de Rumiko Takahashi e do grupo CLAMP. Já Ken Akamatsu, que sob o pseudônimo Awa Mizuno começou fazendo paródias eróticas de jogos de luta como Street Fighter, continuou publicando doujinshis em forma de sobras de estúdio e manuscritos até o início da serialização de Negima. Outros foram ainda mais longe, como Maki Murakami, que publicou paródias explícitas de seu próprio mangá Gravitation.

Adendo: Mangákas

Akamatsu Doujinshi

Ken Akamatsu
Akamatsu nunca escondeu seu passado como doujinka, e já disse em diversas entrevistas que começou nos anos 90, fazendo paródias eróticas de jogos de luta, como Street Fighter. Durante a serialização de Love Hina, o autor ainda estava ativo no cenário doujin e publicava material que continha propostas recusadas, lineart e rascunhos do mangá — parte desse material pode ser encontrado nos extras dos tankobons. Awa Mizuno, como era conhecido no meio, foi um grande adepto do copybon.

Referências

  • Ricardo Cruz. De Fã para Fã – Mundo Doujin. Herói Mangá, nº1. Abril/2002. CONRAD Editora.
  • Arnaldo Massato Oka. Entrevista – Ken Akamatsu. Henshin, nº37. 2002. Editora JBC.
  • Yoko Sakurada e Shin’ichi Torikai. Descobrindo Akihabara. Nipponia, nº48. Setembro/2008. Heibonsha Ltd.

Créditos

  • Revisão: Vorspier
  • Fotos: Acervo pessoal

Sobre o Autor

Julian Fisch vive em São Paulo e é designer e autor do blog Cancelromance. Quando ele não está trabalhando ou provocando tsunderes, pode ser encontrado reclamando que não consegue liberar espaço no quarto para poder guardar aquela última compra compulsiva na Mandarake.

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8 Respostas to “Doujinshi”

  1. vorspier Says:

    Muito bom o artigo. Tive o privilégio de ler antes de um bocado de gente! XD

    Ah! Não esqueçam de visitar o blog do Julian, pessoal! ;D

  2. Mikie-chan Says:

    Muito bom mesmo, parabéns!;)

  3. Tais Says:

    Matéria muito interessante! Não sabia dessa história toda por trás dos doujinshis… e eu achava que era sim a mesma coisa que fanzine O_o

  4. A Respeito de Doujinshi Says:

    […] O artigo não só pode, como deve ser lido por todos aqueles interessados na cultura popular japonesa, independente da área em que mais estejam interessados, pois o doujinshi engloba as principais mídias do entretenimento nipônico e hoje desempenha um papel importante para o crescimento dessa indústria. Então façam um favor a si mesmos e leiam Doujinshi, Os Fanzines Japoneses Nem Um Pouco Amadores! […]

  5. Julian Fisch Says:

    Obrigado a todos que leram o meu artigo e que ainda vão ler.

    Espero poder contribuir novamente para o JPC!

  6. Maximos Says:

    Parabéns pela matéria ^_^
    Eu só conhecia o lado “errado” do doujishi =X.

    A questão do direitos autorais é sempre um problema em XD.
    Eu acho que não chega a ser um problema, pois não há um desvio de fontes, tipo uma pessoa que acompanha um mangá e posteriormente fica sabendo de um doujinshi, não deixaria de acompanhar o mangá por estar acompanhando o doujinshi, então acho que não chega a ferir o lado problemático dos direitos autorais que é o ganho.

    E também não sabia que a Rumiko a princesa do mangá, começou com doujishin.

  7. Portal de conteúdo digital gratuito de Ken Akamatsu planeja disponibilizar doujinshis; Love Hina em japonês já disponível para download legal « Japan Pop Cuiabá Says:

    […] a ocasião, o autor de Love Hina expressou seu desejo de distribuir legalmente via J-Comi os doujinshis, trabalhos independentes feitos por fãs e que fazem parte da cultura otaku. J-Comi traz download […]

  8. J. Says:

    Muito interessante esse artigo!
    Acho os doujinshis muito criativos, claro que não todos XD

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